O patrono

Vida e Obra de Zeca Afonso

Nota biográfica

 

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, filho de José Nepomuceno Afonso e de Maria das Dores, nasceu a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro. Quando o pai foi colocado em Angola, em 1930, como delegado do Procurador da República, Zeca Afonso permaneceu em Aveiro por razões de saúde, confiado aos cuidados de uns tios. Tinha então um ano e meio e cresceu numa casa situada na Fonte das sete Bicas, rodeado da ternura fraterna das primas e dos tios.
De 1933 a 1936 José Afonso viveu com os pais e irmãos em Angola, deslumbrando-se com a paisagem africana. A sua relação com o continente africano reflectir-se-á em toda a sua vida. Em 1934 inicia os estudos da instrução primária.
Em 1936 regressa a Aveiro, onde é recebido por tias do lado materno. Fica pouco tempo.
Em 1937 parte para Moçambique. Em Lourenço Marques reencontra-se com os pais e irmãos, com quem viverá pela última vez em conjunto até 1938.
Volta para o continente em 1938 e fica em casa do tio Filomeno, então presidente da Câmara em Belmonte. Aqui, Zeca Afonso completou a instrução primária e viveu o ambiente mais profundo do salazarismo. O seu tio, salazarista fervoroso, fê-lo envergar a farda da Mocidade Portuguesa. «Foi o ano mais desgraçado da minha vida», confidenciou.
Chega a Coimbra em 1940 para prosseguir os estudos. É matriculado no liceu D. João III e instala-se em casa de uma tia. Neste ano os pais já se encontravam em Timor, onde seriam cativos dos ocupantes japoneses durante três anos, até 1945. Foram três anos sem notícias dos pais.
José Afonso começa a cantar serenatas por volta do quinto ano do Liceu (1945), como «bicho», designação da praxe académica de Coimbra para os estudantes liceais. A sua voz ecoa pela cidade velha e os tradicionalistas reconheciam-no como um bicho que canta bem. A vida boémia chama-o e acumula dois anos de «chumbos» no curso dos liceus.
Em 1947 conhece Maria Amália, sua futura esposa.
Concluiu o curso liceal em 1948. No ano seguinte inscreveu-se no curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras. Integrou várias comitivas do Orfeão Académico de Coimbra e da Tuna Académica da Universidade de Coimbra, nomeadamente em digressões pelo Continente, Angola e Moçambique. Interpretava soberba e superiormente o fado de Coimbra lírico e tradicional.
A Universidade não o seduz; a boémia é mais atraente. Em 1951 já se destaca claramente como um dos grandes intérpretes do fado de Coimbra.
Em Janeiro de 1953 nasce o seu primeiro filho, José Manuel. Grava fados de Coimbra em discos de 78 rotações: «Solitário», «O Sol anda lá no céu», «Contos velhinhos» e «Fado das águias», incluídos em 1996 no CD «José Afonso de capa e batina». Neste mesmo ano começa a cumprir o serviço militar obrigatório em Mafra.
O serviço militar em Mafra e (depois) em Coimbra – já em 1954 – coloca-o em sérias dificuldades económicas. Intensifica-se a crise conjugal.
Em 1955, após o serviço militar, e então com dois filhos, prossegue os estudos para concluir o curso.
Começa a leccionar em Mangualde em 1956. Neste ano inicia-se também o processo de separação e posterior divórcio de Maria Amália.
Em 1957 dá aulas em Aljustrel e Lagos.
José Afonso grava o seu primeiro disco em 45 rotações, «Baladas de Coimbra/Menino de Oiro», em 1958. Nesta altura é professor em Faro e acompanha o movimento em torno da candidatura presidencial de Humberto Delgado. Devido às dificuldades económicas, manda os filhos para Moçambique, para junto dos avós.
Em 1959 frequenta colectividades e canta regularmente em meios populares. No ano seguinte são editados mais dois singles: «Balada do Outono» e «Dr. José Afonso em Baladas de Coimbra / Menino do Bairro Negro». Este último inclui «Os Vampiros», canção proibida pela censura e pela PIDE. «Os Vampiros», juntamente com «Trova do Vento que Passa» (gravada só em 1963), escrita por Manuel Alegre e cantada por Adriano Correia de Oliveira, constituem um marco fundamental da canção de intervenção e de resistência antifascista.
Em 1961 segue atentamente a crise estudantil de Coimbra. Convive em Faro com Luiza Neto Jorge, António Barahona, Ramos Rosa e namora com Zélia, que será a sua segunda mulher. Em 1962 mantém-se em Faro, de onde acompanha a crise estudantil da Universidade de Lisboa.
«Baladas e Canções / Trovas Antigas» e «Baladas e Canções / Canção Longe» são gravados em 1963. Seguem-se, no ano a seguir, «Baladas de José Afonso / O Pastor de Bensafrim» e «Cantares de José Afonso / Coro dos Caídos». Em Maio de 1964, José Afonso actua na Sociedade Fraternidade Operária Grandolense, onde supostamente se inspira para escrever «Grândola, vila morena». Ainda neste ano parte para Moçambique (Lourenço Marques) com Zélia, ao encontro dos seus dois filhos e dos seus pais. Na capital moçambicana relaciona-se com o cineclube e com associações culturais de moçambicanos.
Em 1965 encontra-se a leccionar na Beira. Aqui musicou canções para uma peça teatral de Brecht, «A excepção e a regra». Começou a desenvolver uma intensa actividade política contra o colonialismo, o que lhe trouxe problemas com a PIDE e com a administração colonial.
Mais tarde, em 1967, regressou a Portugal. Foi colocado como professor em Setúbal; entretanto sofreu uma grave crise de saúde que o levou ao internamento em Belas. Quando saiu da clínica tinha sido expulso do ensino oficial. Neste ano foi publicado o LP «Baladas e Canções», onde se reuniram temas dos singles anteriores. Foi publicado também o livro Cantares de José Afonso.
Para sobreviver dá explicações. Em 1968 canta mais assiduamente nas colectividades da margem Sul, onde é nítida a influência do PCP. No Natal deste ano edita «Cantares do Andarilho».
É de salientar que entre 1967-70, Zeca protagoniza uma intervenção política e musical ímpar, convertendo-se num símbolo da resistência. Foi detido várias vezes pela PIDE, manteve contactos com a Luar, o PCP e a esquerda radical. Em 69 empenha-se no movimento sindical, na eleição de deputados à Assembleia Nacional da CDE de Setúbal e participa no 1º Encontro da «Chanson Portugaise de Combat» em Paris. Alvo de censura, José Afonso passa a ser tratado nos jornais por Esoj Osnofa. O álbum «Contos Velhos, Rumos Novos» e o single «Menina dos Olhos Tristes», que contém a canção «Canta Camarada» (quase um hino do PCP!), foram editados também em 69. Em 1970 publica-se o álbum «Traz outro amigo também».
Com os arranjos musicais de José Mário Branco, em 1971 edita «Cantigas do Maio» Nesta obra está “Grândola Vila Morena”, que se tornará um símbolo da revolução de Abril.
Desde então Zeca participa em vários festivais. Em 1972 é publicado o livro José Afonso e lançado o LP «Eu vou ser como a toupeira». Em 1973 continua cantando um pouco por todo o lado; muitas sessões foram proibidas pela PIDE-DGS. Canta no III Congresso da Oposição Democrática. Em Abril é preso e fica em Caxias até finais de Maio. Na prisão política escreve o poema «Redondo Vocábulo». No Natal publica «Venham mais cinco», novamente com a colaboração musical de José Mário Branco. A canção «Venham mais cinco» seria proibida na Emissora Católica Portuguesa.
Em Março de 1974, no Coliseu de Lisboa, ocorre – sob forte vigilância policial – o Primeiro Encontro da Canção Portuguesa promovido pela Casa da Imprensa. Cantam Fausto, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Manuel Freire e outros; terminam o espectáculo entoando «Grândola». Um mês depois acontece o 25 de Abril.
José Afonso acompanha o PREC (Processo Revolucionário em Curso), afastando-se um pouco da sua vida artística. Em Outubro de 74 colabora com empenho nas campanhas de dinamização cultural promovidas pelo MFA em Trás-os-Montes – período que considera dos mais felizes na sua vida.
Depois do fracassado golpe spinolista de 11 de Março de 1975, canta nessa noite no quartel do RAL 1 (Ralis) com Sérgio Godinho em solidariedade com esta unidade, alvo da acção dos golpistas. Apoia as nacionalizações que se seguiram e as ocupações de terras no Ribatejo e no Alentejo. É um entusiasta da reforma agrária. Em 25 de Novembro está ao lado dos pára-quedistas de Tancos, que serão derrotados pelos comandos de Jaime Neves, chefiados por Ramalho Eanes. Em Dezembro grava o LP «O Coro dos Tribunais», onde conta com a colaboração de Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino e José Niza, entre outros.
Em 1976 apoia Otelo Saraiva de Carvalho na candidatura à Presidência da República. Nesta ano sai o álbum «Com as minhas tamanquinhas». No ano seguinte critica profundamente a política de governo do PS, chefiado por Mário Soares.
No LP «Enquanto há força» (1978) revela as suas preocupações anti-colonialistas e anti-imperialistas, assim como a sua posição crítica e mordaz face à Igreja Católica. Com a canção «Um homem novo veio da mata» manifestou o seu apoio ao MPLA.
Em 1979 dedica-se exclusivamente à música e à militância de solidariedade. No Natal deste ano lança o disco «Fura Fura» com a colaboração de Júlio Pereira. Em 1980 apoia os presos do PRP.
O seu apoio aos presos do PRP (Carlos Antunes, Isabel do Carmo e outros) é reafirmado em 1981 em sessões de canto e solidariedade, visando a aplicação da amnistia. Neste mesmo ano actua no Theatre De La Ville de Paris e compõe a música de «Fernão Mendes» para a «Barraca».
Em 1982 regressa à tradição coimbrã com o álbum «Fados de Coimbra». É uma bela versão do fado de Coimbra, interpretado por José Afonso em homenagem a seu pai e a Edmundo Bettencourt. Começam a fazer-se sentir os sintomas da doença.
O seu último espectáculo ocorre em 1983, no Coliseu dos Recreios. José Afonso encontra-se já em dificuldade. Publica-se o duplo álbum «José Afonso ao vivo no Coliseu», com a colaboração de Júlio Pereira, Fausto e José Mário Branco. Trata-se de uma obra belíssima que constitui um autêntico testamento político, estético e artístico.
Em 1984 o estado de saúde agrava-se, facto que não o impede de manifestar a sua solidariedade aos trabalhadores com salários em atraso e a Otelo Saraiva de Carvalho, bem como a outros presos das FP 25 de Abril.
«Galinhas do Mato», último álbum do cantor-poeta, é gravado em 1985. Já não consegue interpretar todos os temas do disco; Janita Salomé, Luís represas, Helena Vieira e Né Ladeiras foram alguns dos intérpretes dos originais de Zeca Afonso. A direcção musical pertenceu a José Mário Branco e Júlio Pereira. Recebe várias homenagens e é condecorado com a Ordem da Liberdade. Neste ano manifesta ainda a sua solidariedade com o povo de Timor Leste e a Fretilin.
Em 1986 tece críticas ao processo de adesão de Portugal à CEE e apoia a candidatura de Maria de Lourdes Pintassilgo à Presidência da República.
A 23 de Fevereiro de 1987 José Afonso morre no Hospital de Setúbal.

Breve apontamento sobre a obra e a pessoa
José Afonso influenciou para sempre a música e a cultura portuguesas. Compositor multifacetado, percorreu no seu repertório diversas áreas musicais, das baladas de Coimbra à música tradicional, tendo também feito música para teatro. É, sem dúvida, uma referência incontornável da música portuguesa na segunda metade do século XX. Hoje, a sua obra musical continua a dar frutos e a influenciar as novas gerações.
José Afonso foi também um importante poeta. A austríaca Elfriede Engelmayer sustentou que é um dos maiores poetas portugueses e o facto de não aparecer nas antologias de poesia portuguesa do século XX deve-se a uma indiferença intencional: «Tem a ver com a sua imagem. Porque um cantor não tem a ver com literatura e porque foi uma pessoa com opções marcadamente políticas», afirma a docente de Coimbra.
«Zeca» é admirado também pela sua personalidade e forma de estar na vida: «Admito que a revolução seja uma utopia, mas no meu dia-a-dia procuro comportar-me como se ela fosse tangível. Continuo a pensar que devemos lutar onde exista opressão, seja a que nível for».
Foi um homem solidário, movido por causas e ideais que lhe pareciam justos. Um ser humano que vivia movido por uma utopia e que nunca parou muito tempo no mesmo lugar. Um dia disse de si próprio: «Alguma coisa do que sou e fui foi em viagem».

 

Obras de referência:
Textos e canções de José Afonso, Assírio & Alvim, 1983.
Salvador, José A., José Afonso, O Rosto da Utopia, Edições Afrontamento, 1999.
Engelmayer, Elfriede, José Afonso Poeta, Ulmeiro, 1999.

 

Ligações:
Visita a página da Associação José Afonso: www.aja.pt